Nos últimos dias muitos foram os comentários sobre a ação civil pública movida pelo Ministério Público de Minas Gerais contra a Fundação Hospitalar Dr. Moises Magalhães Freire.
Destaquei alguns pontos da petição inicial desta ACP, que seguem abaixo.
Ressalto que existem provas nos autos, conforme relatado na ACP dando conta de situações gravíssimas, tais como:
Um paciente procurou atendimento na Fundação. Inicialmente, o paciente foi atendido pelo SUS, ocasião em que foi submetido a uma cirurgia ortopédica. Contudo, ao retornar ao hospital para a continuidade do tratamento foi compelido a pagar pelos serviços (ff. 415/416).
Situação análoga ocorreu com outra paciente, que procurou atendimento na Fundação, ocasião em que foi atendida no “pronto-socorro” do hospital (f. 404). A paciente esclareceu que, naquela oportunidade, o médico plantonista colocou uma “tala” em sua perna, liberando-a para voltar para casa, devendo retornar, no dia seguinte, para atendimento com o médico especialista. Ocorre que, ao retornar para o hospital, a paciente foi “direcionada” para atendimento privado (f. 406).
1. SÍNTESE DO OBJETO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA:
A presente ação civil pública tem por objetivo fazer com que a Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire – entidade instituída pelo Município de Pirapora com a finalidade de atuar como um hospital público –, respeite os princípios do Sistema Único de Saúde e passe a atender, exclusivamente, os usuários desse sistema, abstendo-se de destinar sua capacidade operacional, construída com recursos públicos, mais precisamente com recursos do orçamento da Seguridade Social, para a prestação de serviços de natureza privada, ou seja, para pacientes particulares ou clientes de planos e seguros de saúde, nessa condição.
2. FUNDAMENTOS DE FATO E DE DIREITO:
2.1 Aspectos fáticos envolvendo a instituição da fundação-ré
A Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire, entidade pública de natureza fundacional, foi instituída pelo Município de Pirapora/MG.
O processo de instituição da nova entidade teve início com a aprovação da lei municipal de n.º 1.882/2007 (cópia inserida às ff. 70/74 do Inquérito Civil anexo).
A referida lei, em seu artigo 1º, autorizou o Município de Pirapora a “instituir e contribuir na manutenção de uma Fundação”, com o objetivo de “prestar serviços de saúde de caráter social”. A mesma lei, em seu art. 4º, §2º, especificou o objetivo da fundação como sendo o de “atender 100% (cem por cento) da demanda do Sistema Único de Saúde (SUS) que lhe forem encaminhados pelo Gestor de saúde do Município”.
Não obstante, a Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire vem atuando, no âmbito do Sistema Único de Saúde, como se fora um mero prestador privado de serviços, em nítida violação aos princípios vetores desse sistema, tal como estabelecidos pelo Constituinte Originário que, de forma inovadora, impôs ao Poder Público a condição de protagonista em matéria de prestação de serviços de saúde, reservando, à iniciativa privada, a possibilidade de atuação apenas complementar nesse sistema.
E mais. Esse ilegal tratamento conferido à fundação-ré tem permitido, lamentavelmente, a ocorrência de outro gravíssimo desvirtuamento do sistema, consistente no fato de que parte da capacidade operacional da referida fundação municipal vem sendo utilizada para atendimento de pacientes particulares e de convênios privados.
2.2 Aspectos jurídicos que impõem a conclusão de que a fundação-ré é uma entidade pública resultante do fenômeno da descentralização administrativa
Ao instituir a Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire, o Município de Pirapora não criou uma entidade privada com a qual, posteriormente, pudesse contratar a prestação de serviços. Ao fazê-lo, simplesmente descentralizou parte de suas funções administrativas, criando uma pessoa jurídica para assumir essa função descentralizada.
Não bastassem esses aspectos formais, uma breve análise das regras de direito civil previstas para as fundações privadas também impõe a conclusão de que a fundação-ré não poderia ser considerada uma fundação privada, porquanto, ao ser instituída, não foi dotada de um patrimônio suficiente para o cumprimento de sua finalidade.
A lei municipal que autorizou a instituição da fundação-ré também estabeleceu a forma pela qual o Município de Pirapora manteria a entidade, nos seguintes termos:
Art. 4º O Executivo consignará dotação orçamentária, em forma de subvenção, para auxílio na manutenção da Fundação, não podendo tal dotação ultrapassar a 3% do Orçamento do Município. (grifei).
O artigo 4º, §1º da referida lei estabeleceu o mecanismo de repasse dos recursos públicos: a fundação receberá os repasses mensalmente e em forma de duodécimos.
Relevante o fato de que a dotação inicial destinada à instituição da nova fundação constituiu-se apenas de “equipamentos e utensílios”, conforme se extrai do disposto no artigo 3º da Lei Municipal nº 1882/2007. É fácil perceber, pois, que a fundação-ré não teria conseguido sustentar-se não fosse o “auxílio”, posterior a sua instituição, que fora prestado pelo Município de Pirapora. Aliás, quanto ao papel do Município de Pirapora na manutenção da fundação, merecem também destaque algumas deliberações tomadas em primeira reunião do Conselho Diretor da fundação, realizada em 08/10/2007 (fl. 54 do IC):
Mas não é só. Note-se que a fundação-ré, que tem como objetivo essencial funcionar como um hospital, não dispunha, como dotação inicial, de um único bem imóvel e nem mesmo de recursos para a aquisição ou locação de um. Aliás, nesse ponto, é preciso registrar que a sede da Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire é um imóvel que pertence à Fundação Nacional de Saúde – FUNASA. Como demonstra o documento de ff. 174/176 do Inquérito Civil anexo, o referido imóvel foi cedido ao Município de Pirapora, que, por sua vez, cedeu-o para a nova fundação por ele instituída (fls. 172/173 do Inquérito Civil anexo). Observe-se que, no termo de cessão de uso firmado entre a FUNASA e o Município de Pirapora consta, na cláusula segunda, subcláusula segunda, que esse imóvel deveria ser destinado exclusivamente ao Sistema Único de Saúde:
Diante dos aspectos fáticos citados, é fácil perceber que a fundação-ré não pode, de forma alguma, ser tratada como se fosse uma fundação privada. Não bastasse o fato de ter sido instituída pelo Poder Público – e isso deveria bastar, tendo em vista as regras previstas no artigo 37 da Constituição da República – resta claro que a fundação-ré não tinha uma dotação inicial suficiente para sequer conseguir se manter por um único dia.
Como já destacado, o Município de Pirapora foi autorizado por lei a “instituir e contribuir na manutenção de uma Fundação”, com o objetivo de “prestar serviços de saúde de caráter social”, devendo esta “atender 100% (cem por cento) da demanda do Sistema Único de Saúde (SUS) que lhe forem encaminhados pelo Gestor de saúde do Município”.
Com esses aportes legais e doutrinários, assenta-se, claramente, que a fundação-ré não é uma entidade privada; trata-se, à toda evidência, de um hospital público.
Em síntese conclusiva, este o quadro fático da Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire: 1) a fundação foi instituída pelo Município de Pirapora, mediante autorização legislativa; 2) a fundação tem como finalidade a prestação de serviços de saúde, serviços esses inseridos no âmbito do Sistema Único de Saúde (finalidade de atender 100% da demanda do SUS); 3) o patrimônio da fundação (dotação inicial) resumiu-se a “equipamentos e utensílios” (artigo 3º da Lei Municipal n.º 1882/2007); 4) a sede da fundação está instalada em um imóvel público, que pertence à Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, tendo sido esse imóvel cedido para o Município de Pirapora, que, por sua vez, cedeu-o para a nova fundação por ele instituída, sendo certo que uma das condições para a cessão do imóvel para o Município de Pirapora foi a sua destinação, com exclusividade, para atividades do SUS; 5) a fundação recebe, ordinariamente, recursos públicos para sua manutenção.
Por isso, é manifesta a ilegalidade de se tratar a fundação-ré como uma entidade privada e que, com o Município de Pirapora, teria uma relação meramente contratual. Nesse sentido, o enunciado normativo contido no art. 2º da Lei nº 1.882/2007, do Município de Pirapora, no ponto em que dispõe que a autorização para instituição da nova fundação seria dada “nos termos dos artigos 62 a 69 do Código Civil Brasileiro” deve ser considerado inválido – controle de legalidade – em face do que dispõe o Decreto-Lei nº 200/67, em seu artigo 5º, §3º, já citado. Além disso, o referido enunciado normativo, no ponto citado, deve ser considerado incompatível – controle de constitucionalidade incidental – com o disposto no artigo 37 da Constituição da República de 1988.
Destarte, deve concluir-se que a fundação-ré é uma entidade estatal que presta serviço público descentralizado. Tratando-se de serviço público descentralizado, a fundação-ré, deve ser tratada, em sua essência, como um hospital público integrante do SUS.
2.3 Aspectos fáticos envolvendo a atuação da Fundação-ré
Não obstante se tratar de uma instituição pública, a fundação-ré vem atuando, no âmbito do Sistema Único de Saúde, como se fosse um mero hospital privado conveniado.
Em consulta ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (relatório acostado à f. 478 do IC), observa-se que a fundação-ré se apresenta como uma “Entidade Beneficente sem fins lucrativos”, integrante da esfera “privada”.
É notório o fato de que a fundação-ré tem disponibilizado toda a sua estrutura, construída com recursos públicos, para o atendimento de pacientes privados e de planos de saúde. O SUS, que deveria ser a essência da Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire, vem sendo tratado como se fosse apenas mais um de seus convênios privados, em total desvirtuamento de sua condição de instituição hospitalar de natureza pública. Há, a propósito, na sede da fundação-ré, uma portaria própria para os usuários particulares e de planos de saúde. Não por acaso, o ilegal atendimento de usuários do SUS e particulares, em hospitais públicos, ficou conhecido como o fenômeno da “dupla-porta”.
Os documentos de ff. 354/478 do IC bem demonstram as nefastas consequências de se admitir essa promiscuidade entre o público e o privado. Há evidências concretas de que a fundação-ré tem recebido pacientes que deveriam ser atendidos pelo SUS, direcionando-os para atendimento privado, mediante cobrança pelos serviços prestados.
Como se nota, o prejuízo aos usuários do SUS é manifesto. Essa promiscuidade entre o público e o privado, na fundação-ré, tem sido causa de redirecionamentos criminosos de pacientes do SUS para atendimento privado, com cobrança pelos serviços.
3. DOS PEDIDOS LIMINARES
O Ministério Público, com fundamento nos artigos 4º e 12 da Lei 7.347/85, combinados com o art. 273 do Código de Processo Civil, pede que:
a) seja determinado à Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire que se abstenha de atender usuários particulares e de planos de saúde, nessa condição, devendo destinar a integralidade de sua capacidade instalada para o atendimento de usuários do Sistema Único de Saúde – SUS, fixando-se multa diária para a hipótese de descumprimento, em valor não inferior a R$50.000,00 (cinquenta mil reais); que seja ressalvado, desse comando, apenas os pacientes privados que porventura já estejam internados no hospital;
b) que seja determinado à Fundação Hospitalar Dr. Moisés Magalhães Freire que garanta atendimento integral aos usuários do SUS, de acordo com a pactuação já existente, disponibilizando 100% de seus leitos, consultas e exames aos usuários do sistema, de forma ininterrupta, sobretudo no atendimento das urgências e emergências, sob pena de multa diária a ser fixada, em valor não inferior a R$50.000,00 (cinquenta mil reais);
c) que seja determinado ao Município de Pirapora que, na condição de responsável pela integralidade da atenção à saúde de sua população, garanta, solidariamente, o atendimento dos usuários do SUS, na forma disposto do item precedente, sob pena de multa diária a ser fixada, não inferior a R$50.000,00 (cinquenta mil reais);
d) seja a decisão tomada (item a) comunicada ao Ministério da Saúde e à Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais, para que adotem as providências, no âmbito de suas competências, para a efetiva fiscalização da medida.
Pirapora/MG, 24 de novembro de 2011.
Gustavo Augusto Pereira de Carvalho Rolla
Promotor de Justiça.